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CONFLITOS NO TERRITÓRIO-EXTRATIVO-MINERAL NA BAHIA

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Lucas Zenha Antonino1

O geógrafo Milton Santos já nos alertava sobre as desigualdades sociais e os conflitos territoriais na década de 1980. Nessas ocasiões, o autor ressaltava que a prática de desvendar as sangrias do território é a verdadeira busca de uma real democracia, na qual a conquista permanente da cidadania nos levaria a um modelo econômico que se subordinaria ao modelo cívico. Acontece que o contrário é a regra, o modelo econômico sempre se sobressaiu, como observamos ao longo da formação histórica-geográfica deste país que resultou em uma estrutura de propriedade privada das mais concentradas e desiguais do mundo, com todo o drama territorial de uma nação com suas fortes contradições e enfrentamentos. O autor baiano é firme ao dizer que a desordem do Brasil é visível a partir do território (SANTOS, 1987). Grande parte de sua obra é relacionada à indignação frente a inexistência da integralidade da cidadania do povo brasileiro, nos colocando uma simples pergunta, porém de uma densidade enorme e que nos perturba até hoje: há cidadãos neste país?

Debater sobre o território-extrativo-mineral exige, primeiramente, um esforço teórico-conceitual sobre as concepções que a palavra-conceito território ganhou e ganha ao longo do tempo dentro da ciência moderna. A concepção básica de território remete ao espaço apropriado e definido a partir de relações de poder e suas dinâmicas, estabelecendo hegemonias e resistências, que se desdobram em conflitos e contradições. São dezenas de autores que já se debruçaram em debater sobre o território, transpondo e percorrendo além dos limites da própria Ciência Geográfica.

Em uma síntese destaca-se que o território não é só terra, solo, subsolo ou aéreo, território também é líquido, é mar, é rio, é baía, é flutuante, podendo ser móvel. Pode possuir identidades funcionais, alguns são mais funcionalidade do que chão, identidade e afetividades. Podem não ser contíguos, formando mosaicos desvinculados, mas com disputas por áreas de influências ao redor. É também herança social e movimento atual, em conjunto e inseparável. Na interdependência dos territórios-Estado, a globalização amplia em demasiado sua importância e domínio. Soma-se as necessárias perspectivas integradoras entre as vertentes jurídico-política, cultural e econômica para a compreensão da dimensão social desta totalidade, aliando, nesta relação, também, tempo-espaço-território e toda a multiescalaridade envolvida.

O termo território-extrativo-mineral é fruto da operacionalização da categoria território e cumpre o papel de delinear e de nortear conceitualmente este debate. Esse termo agrupa a categoria território, que vem à frente, para indicar o cunho geográfico da questão da mineração como atividade extrativa. A qualificação do território como extrativo-mineral direciona o leitor para a compreensão do uso que se faz do espaço geográfico, ou seja, de como a atividade extrativa se apropria do espaço e o faz tornar-se território, envolvendo uma complexidade de diferentes grupos sociais que também precisam deste mesmo território. O território-extrativo-mineral abrange duas faces contundentes, que dialeticamente, se contradizem e se complementam, tornando-o, portanto, fonte de conflitos: o território recurso e o território abrigo. A etimologia da palavra extração se relaciona ao significado de arrancar pela força, o que importa para as grandes empresas da mineração é estabelecer um território que lhe forneça os recursos minerais para a exportação e para seu efetivo lucro.

Uma verdadeira territorialidade é aquela que está assegurada e exercida. No caso da mineração, no exato momento que existe a concessão e a licença para operação e extração mineral, a empresa mineradora está com a totalidade do território-extrativo sob suas mãos, dando-lhe o conteúdo de recurso-empreendimento por meio do seu uso. O movimento de territorialização, na verdade, começa anteriormente. No primeiro momento de solicitações de pesquisa mineral, e seu imediato cadastro em sistemas de informações geográficas (SIGMINE), começa a se desenhar um provável e futuro território-extrativo.

Para as populações do campo e comunidades tradicionais, a preocupação é retirar da terra a reprodução para a sua sobrevivência, de uma forma e ritmo não devastador, de baixa intensidade e a destinação da produção é local ou, no máximo, regional. Na Bahia temos uma multiplicidade de \textbf{Formas de Acesso à Terra} identificadas na luta e às situações vulneráveis que elas se encontram, assim, temos o mapa da invisibilidade contendo: 595 comunidades Fundo de Pasto; 237 Colônias/associações de Pescadores; 973 Quilombos identificados e destas 651 com certificação na Fundação Cultural Palmares; 523 Assentamentos de Reforma Agrária e apenas 28 povos Indígenas (GEOGRAFAR, 2010).

Pode-se qualificar os territórios-extrativos-minerais como voláteis, uma vez que não é apenas a condição da existência do mineral que o define, ou até mesmo de natureza inconstante ou instável, pois os interesses privados podem ''voar'' para outros territórios mais atrativos do ponto de vista técnico e financeiro em um repentino instante. Rapidez e fluidez do capital são características bastante conhecidas na escala global.

Podem, também, serem caracterizados como de uma distribuição geográfica ''irregular'', cada território-extrativo terá uma gênese geológica diferente e possuir teores minerais distintos. Assim, esses territórios-extrativos vão se espraiar para onde os veios, bolsões e/ou depósitos minerais estão. Não seguem nenhuma fronteira política territorial ou, até mesmo, os territórios-terra-abrigo das comunidades tradicionais ou as terras dos povos do campo. É certo que a face do território-extrativo-mineral como recurso-empreendimento tem sua realização definida pela rigidez locacional geológica, mas, não menos importante, a face como terra-abrigo também se estabelece a partir de uma rigidez locacional, mesmo que com outros propósitos. Populações do campo e comunidades tradicionais estabeleceram territórios ao longo do tempo, esses se tornam históricos e simbólicos; dependem dos aspectos naturais do território-terra-abrigo para reproduzirem suas formas de vida, cujo respeito ao meio ambiente é um dos pilares para a perpetuação e a sobrevivência do grupo.

Migrações compulsórias acarretam às pessoas a situações de liminaridade (VAN GENNEP, 2011), cuja reteritorialização se dará, certamente, precarizada em outros espaços, segundo Rogério Haesbaert (2011). Por outro lado, existem populações que permanecem no entorno de algum grande empreendimento minerário e que passam por transformações territoriais rápidas e profundas. Modificações principalmente no que tange às formas de apropriação e distribuição dos recursos naturais de seu território, configurando assim uma situação de ''deslocamento in situ'' (ZHOURI ET al, 2013).

Onde existirem minerais estratégicos, em quantidade abundante e/ou com alto teor para comercialização, fatalmente haverá disputa e, sequencialmente, extração. Territórios-extrativos-minerais, como já mencionado, possuem fluxos e redes de grande intensidade. São abertos e necessitam da escala global para expandirem, se efetivarem e se perpetuarem. Estão alinhados aos fluxos de informações privilegiadas, a de uma veloz e eficiente rede sócio técnica comunicacional, beneficiados pelas logísticas portuárias, rodoferroviárias, fluviais, aéreas, telefônicas e de internet. Por isso, onde existem interesses para o estabelecimento dos territórios-extrativos-minerais, na grande maioria dos casos, são realizadas ações disciplinares rigorosas e com austeridade generalizada pelo Estado e pelas empresas mineradoras. David Harvey (2005) adjetivou esse processo como acumulação por espoliação, sublinhando que se trata de um novo fôlego para a reprodução do capital na contemporaneidade.

A forma de acumulação que a capital demanda, atualmente, vem precedida e acompanhada, estruturalmente, pela guerra contra os povos. Raúl Zibechi (2016) afirma que guerra e acumulação são sinônimos e subordinam o Estado-nação. O autor complementa que essa cultura extrativista nada mais é do que o resultado da mutação criada pelo próprio neoliberalismo, suportado pelo capital financeiro vigente e faz parte da atual lógica do modelo de mineração em andamento no Brasil e em muitos países latinos. Uma pujante e desenfreada busca das riquezas minerais, com o extermínio das populações e da natureza, ou seja, a espoliação territorial.

Conflito Minerais já foram registrados em todas as regiões da Bahia: acontecem em todas as fases dos processos, desde o início da pesquisa, passando pela implantação da atividade, durante a extração, na logística de distribuição e até mesmo após os fechamentos das minas, perpetuando situações conflituosas por décadas. Um breve panorama da Bahia demonstra as diversas denúncias que já foram realizadas em órgãos públicos responsáveis. Existem centenas de trabalhos acadêmicos e técnicos que também já evidenciaram os conflitos existentes.

Parte dos conflitos acontece em territórios-extrativos do passado, onde a mineração já foi encerrada, porém graves problemas ainda permanecem na ordem do cotidiano e ainda estão associados à essa exploração. A extração e o processamento de minério de chumbo nos municípios de Boquira e Santo Amaro da Purificação trouxeram graves consequências à saúde da população. Já o antigo distrito de Bom Jesus da Serra, hoje emancipado, teve exploração da crisotila para produção do amianto por quase 30 anos e é outro exemplo histórico de violência extrema com a natureza, com os trabalhadores e com a população residente, expostos aos riscos de inalação desse pó mineral após sua extração. A Sociedade Anônima Mineração de Amianto (Sama), que pertencia à francesa Saint-Gobain e hoje é controlada pelo Grupo Eternit, extraiu na jazida ``São Félix do Amianto'', na época, entre 1940 e 1968, município de Poções. Ao encerrar a lavra, a empresa deixou uma amputação territorial (GUDINAS, 2015) de grandes proporções, não procedendo no fechamento adequado da mina segundo as normas específicas.

Na contemporaneidade, outros conflitos acontecem em territórios onde a extração mineral e suas espoliações estão em andamento. A exploração de urânio em Caetité, com envolvimento de radiação nuclear em poços artesianos, nas plantações e nos territórios dos povoados situados nas proximidades da mina das Indústrias Nucleares do Brasil (INB) é hoje um grande problema territorial. Denúncias apontam que mais de quatorze comunidades em Caetité e Lagoa Real, município vizinho, como o Quilombo de Antas Velhas (quilombola) e a Comunidade de Araticum como sendo altamente expostas a essa calamidade. Já na região centro norte do estado da Bahia, em Jaguarari, registra-se a mina de cobre da Caraíba Metais, quase exaurida ao longo dos 43 anos de atividade mineral, em um município ainda marcado pela desigualdade socioespacial. Jaguarari foi líder em arrecadação de Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM) na Bahia no ano de 2015. Em Campo Formoso, limítrofe a Jaguarari na porção oeste, as extrações de calcário, cromita e ferro duelam com riquezas arqueológicas subterrâneas e as populações quilombolas nas superfícies em condições muito precárias. Em Campo Alegre dos Lourdes, na divisa com o Piauí, há a intensificação da mineração de fosfato e, consequentemente, há registros de conflitos com Quilombolas e comunidades de Fundo de Pasto. Algumas das residências estão localizadas a menos de 300 metros da planta da empresa. Além destes casos abordados, acrescenta-se os territórios-extrativos dos municípios de Andorinhas, Barra do Mendes, Barrocas, Brumado, Cansanção, Cordeiro, Gentil do Ouro, Irecê, Juazeiro, Lapão, Licínio de Almeida, Maracás, Miguel Calmon, Monte Santo, Nordestina, Oliveiras dos Brejinhos, Piripá, Rui Barbosa, Simões Filho, Xique, entre outros, que compõem essa imensa lista da violência, com amputações e espoliações territoriais.

Por outro lado, já existem denúncias que apontam que há conflitos territoriais já na primeira fase da mineração, que se caracteriza pela pesquisa mineral com objetivos de avaliar as características geológicas e as condições econômicas de um determinado território. É o território-extrativo-mineral do futuro, que nem começou sua atividade de extração e já aterroriza populações ao redor que não são escutadas ou respeitadas em suas terras-territórios. A Bahia é o Estado líder nas solicitações de autorização de pesquisa mineral no Brasil e os conflitos nessa prospecção são registrados em todas as regiões.

Todos esses conflitos não devem ser considerados como um erro, anomalia fora do padrão ou desvio no sistema social, muito pelo contrário, é o próprio núcleo dessa confrontação de força e modus operandi. Desta forma, corrobora-se que a categoria ''conflito'' é um componente constitutivo das interações sociais, nunca em equilíbrio. As instituições estatais brasileiras ''modernas'' foram formatadas para atuarem nessa guerra contra os povos, legitimando os grupos hegemônicos e suas ações territoriais aterrorizadoras. Os territórios-extrativos contam com forte apoio estatal, suplantado por um modelo de desenvolvimento econômico predatório e violento. O levantamento de conflitos territoriais de mineração evidenciou centenas de outros conflitos, essa relação neste texto é apenas uma pequena parte de uma totalidade mais abrangente que estão presentes nos mais de 160 municípios baianos, onde são extraídas mais de 40 substâncias minerais, em 440 concessões de lavra (2016).

REFERÊNCIAS

BRASIL, Ministério de Minas e Energia; Departamento Nacional de Produção Mineral. Sistema de Informação Geográfico da Mineração (SIGMINE), 2016.

GEOGRAFAR -- Grupo de Pesquisa GeografAR -- A Geografia dos assentamentos rurais na Bahia CNPq/UFBA / Banco de Dados do Projeto Geografar, Mapeamentos dos Grupos Sociais da Bahia, 2005/2010.

GUDYNAS, Eduardo. Extrativismos: conceito, tendências e efeitos derrame; (CLAES). Uruguai, Montevideo. Anotações e material do Seminário: Mineração na América Latina: neoextrativismo e lutas territoriais. GESTA/FAFICH /UFMG, Belo Horizonte, agosto, 2015.

HARVEY, David. O Neoliberalismo. Histórias e Implicações. Ed. Loyola, tradução Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves, 2005.

HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do ``fim dos territórios'' à multiterritorialidade. 6ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

SANTOS, Milton, SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2012.

SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo. Ed Nobel, 1987.

VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de Passagem, Editora Vozes, Petrópolis, 2011.

ZIBECHI, Raúl. Acumulação por extermínio. In: Rebelión, 2016. A tradução Cepat. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/557632-acumulacao-por-exterminio. Acessado em 31/07/2017.

ZHOURI, Andrea; OLIVEIRA, R; MOTTA, L. Deslocamentos Múltiplos e a compulsoriedade do desenvolvimento: urbanização e barragens em face aos lugares. XXXI LASA, Washington D.C - EUA, 9 May- 1st June, 2013. Painel: Deslocamentos e desigualdades no Capitalismo Global Contemporâneo.


  1. Nascido no quadrilátero ferrífero, Minas Gerais, o autor é Geógrafo e Mestre em Geografia, atualmente Doutorando em Geografia pela UFBA, pertencente ao Grupo de Pesquisa GeografAR https://geografar.ufba.br/ e professor do Instituto Federal de Alagoas.